As composições de Zé Dantas eram conhecidas no Recife dos programas de auditório, dos bares do Pina, centro da boêmia no Recife da época, onde as horas se esticavam com o carnaibense cantando e tocando, em torno de uma peixada, uma caranguejada, pois a área era pródiga em peixarias. Em dezembro de 1947, quando se anunciou a vinda de Luiz Gonzaga ao Recife, para se apresentar na Festa da Mocidade, que acontecia no Parque 13 de Maio, não se sabe se sugerido por amigos, ele decidiu que o Rei do Baião poderia gostar de sua música. Há versões diferentes do encontro entre Zé Dantas e Luiz Gonzaga. Numa delas, o afoito Zé Dantas vai ao Grande Hotel, no Cais de Santa Rita (onde hoje funciona o Fórum Thomas de Aquino), sobe ao apartamento em que Luiz Gonzaga estava e entra porta adentro cantando um aboio. Outra é contada pelo próprio Luiz Gonzaga, numa entrevista à Revista do Rádio, em 1951 (para a primeira matéria sobre Zé Dantas no Sudeste). Ele recebeu um bilhete avisando-o que meia dúzia de baiões estavam à sua espera em alguma parte do bar do Grande Hotel.
Quando terminou sua apresentação, ele foi até lá. Deparou-se com uma roda de rapazes tomando uísque, e se dirigiu até eles: “Quem é Zé Dantas?”. Zé se levantou, se apresentou. Gonzaga simpatizou com ele. Afastaram-se da turma, e Zé Dantas lhe mostrou uma fileira de composições, todas destinadas a se tornarem clássicos da MPB: Forró de Mané Vito, A volta da asa-branca, Vem morena (cujo título original era Resfolego da sanfona). Luiz Gonzaga contou que escutou aquela enxurrada de criatividade e disse: “Vou meter tudo na bagagem e gravar no Rio”.
No entanto, no texto da contracapa do álbum Luiz Gonzaga canta seus sucessos com Zé Dantas (RCA, 1959), Zé Dantas escreveu: “Em 1947, conhecemos Luiz Gonzaga em Recife, na residência de um amigo comum, onde havia uma festa íntima. (…) A identidade da vocação artística nos dispensou apresentação, a surpreendente coincidência de motivação nos tornou amigos e a música nos fez parceiros”.
Quando Gonzaga lhe avisou que ia gravar suas músicas, o acadêmico de Medicina apressou-se em pedir que não colocasse seu nome no disco, para não sofrer represálias do pai, nem contrariá-lo, claro. Lula pediu para que fossem colocados o seu nome e o de Zé Dantas no rótulo do disco. Aqui se faz necessária a observação. Tratava-se de uma prática comum no mercado fonográfico, o intérprete pegar parceria numa composição que gravasse. Ressaltando que a lei de direitos autorais engatinhava no Brasil. As sociedades de arrecadação serviam a teatro e à música ao mesmo tempo, até porque até os anos 1930, a música era quase que parte intrínseca de musicais. Astros do rádio, grandes vendedores de bolachões de 78 rotações, como Francisco Alves ou Mário Reis simplesmente compravam composições. Os compositores muitas vezes mostravam-se agradecidos porque não viam a música como algo que alguém pudesse comprar, se elas lhe chegavam sem custar nada.
Luiz Gonzaga gravou várias composições de Zé Dantas, entre
elas A volta da asa-branca e Vem morena. Imagem: Reprodução
Zé Dantas, embora um homem dado a leituras, universitário, tinha essa relação lúdica com a música, sua diversão. A profissão mesmo era a de médico, na qual foi igualmente bem-sucedido. Só que suas composições estouravam uma a uma, numa fase em que Luiz Gonzaga tornara-se o maior fenômeno comercial do mercado de discos do país, levando o baião a competir em popularidade com o samba no Rio de janeiro. Todas as grandes estrelas do rádio eram obrigadas a gravar os ritmos estilizados por Luiz Gonzaga e parceiros, se quisessem permanecer nas paradas. Zé Dantas estava terminando a faculdade quando recebeu uma convocação do Rio, da sociedade pela qual editava suas músicas com Luiz Gonzaga. Chegou lá e boquiabriu-se com a quantidade de dinheiro que lhe pagaram de direitos autorais. Entre outras coisas, a bolada lhe serviu para que o pai não fizesse objeção a que se dedicasse à música, desde que também não deixasse a medicina de lado.
RESFOLEGO DA SANFONA
A estreia da parceria em disco aconteceu em janeiro de 1950, com o Resfolego da sanfona, rebatizada de Vem morena (lado A de Quase maluco, Luiz Gonzaga/Victor Simon). Daí em diante, praticamente em todo 78 rotações lançado por Lua havia uma composição da lavra de Zé Dantas, alguns deles divididos com composição de Humberto Teixeira. Tanto um quanto o outro cediam parcerias para Luiz Gonzaga. A viúva de Zé Dantas, Iolanda (falecida em 2017, aos 86 anos), afirmava categoricamente que as composições do marido lançadas por Luiz Gonzaga eram feitas apenas por Zé Dantas. Gonzaga às vezes dava o mote, como aconteceu com Algodão ou Paulo Afonso, e Dantas desenvolvia. Obviamente, os dois não encontrariam melhor intérprete para suas músicas. Gonzaga era sertanejo, sabia como ninguém cantá-las, criava arranjos, dava-lhes alma.
As parcerias continuaram até 1955, quando nasceu Sandra, a primogênita de Zé Dantas com dona Iolanda. Ela contava que foi a partir daí que Zé Dantas parou de ceder parcerias, todas as suas criações dali em diante seriam dele e de Sandra. Por essa época, ele sabia muito bem que sua obra se tornara um patrimônio financeiramente valioso. É provável que tenha acontecido alguma rusga entre os dois. Assim como deve ter acontecido com Humberto Teixeira, que parou de compor para Gonzaga. Não apenas parou, mas produziu um LP de 10 polegadas intitulado Eu sou o baião, com composições suas interpretadas por nomes conhecidos do rádio, porém sem Luiz Gonzaga.
Mas, na verdade, Luiz Gonzaga continuou parceiro de Zé Dantas até 1957. Lula só voltaria a gravá-lo em 1960, com São João no Arraiá, mas agora apenas com a assinatura de Zé Dantas. A última composição que Dantas forneceu a Luiz Gonzaga, em vida, foi Pisa no pilão, em 1961, ano em que ele faleceu. A parceria esfriou, mas a amizade, garantia a viúva, continuava. Ao contrário de Humberto Teixeira, um sujeito elegante, que circulava pela alta na Zona Sul do Rio, e não frequentava tanto a casa de Luiz Gonzaga, na Zona Norte carioca, Zé Dantas, quando se livrava do hospital (sua especialização era obstetrícia), era festeiro, de bares e bate-papos com amigo, um bom humor sempre em dia.
“Um dia, eu fui resolver um negócio com Chiquinha e ficamos olhando as vitrines em Copacabana. De repente, o carro parou ao lado da calçada. Era Zé Dantas. Perguntou assim: ‘O que essas suas negas estão fazendo por aqui?’, mandou que a gente entrasse no carro e levou a gente pra casa de Gonzaga”, contou Priscila, companheira de infância de Luiz Gonzaga no Araripe, e que trabalhou durante 38 anos na casa do Rei do Baião, no Rio. “Zé Dantas era gente da gente”, elogiava (em entrevista feita com Priscila Vicente dos Santos, no Exu, em 2002. Ela faleceu em 2014, com estimados 99 anos).
Mas no auge do baião, os dois parceiros e Luiz Gonzaga se davam muito bem. Chegaram a ter programa juntos na Rádio Nacional, com textos de Humberto e Zé, e voz de Luiz Gonzaga, e ainda com o maestro e compositor pernambucano Guio de Moraes (sobrinho de Edgard e Raul Moraes, bastante prestigiado no rádio carioca). A princípio, o programa seria dedicado ao folclore, às várias músicas da região Nordeste, especialidade de Zé Dantas, mas foi batizado de No mundo do baião, e não foi muito longe, durou três meses.
Numa das últimas idas ao sítio de Luiz Gonzaga em Miguel Pereira (um sítio elegante, que anos depois seria comprado por Marlene Matos, produtora de Xuxa Meneghel), os problemas de saúde de Zé Dantas se agravaram. Ele sentia muitas dores nas costas, e passou a se autorreceitar com cortisona, um remédio ainda pouco conhecido, que mandava importar dos Estados Unidos.
Numa entrevista a Leda Dias para o livro Zé Dantas segundo a letra I (série Arquivo Vivo, da Fundação de Cultura do Recife, 2010), dona Iolanda revelou que o marido sofria de espondilite reumatoide. Na propriedade de Luiz Gonzaga, onde a família Dantas foi passar o Carnaval, ele levou uma pancada que lhe partiu um tendão de Aquiles. Para suportar a dor, aumentou as dosagens do remédio, cujos efeitos colaterais lhe provocaram a insuficiência renal, que o mataria em 11 de março de 1962. Estava com apenas 41 anos. Seu corpo foi embalsamado e enviado para o Recife. Foi sepultado no cemitério de Santo Amaro.
Como médico, é provável que Zé Dantas soubesse da gravidade de sua doença. Nessa derradeira visita a Luiz Gonzaga, ele trouxe o imenso e pesado gravador em que registrava suas composições. Na Terça-feira de Carnaval, colocou sobre uma mesa, pegou o violão e cantou, uma maioria de canções inéditas, por cerca de duas horas, para uma pequena plateia, entre a qual se encontrava o adolescente Luiz Gonzaga Junior, que estava começando a morar com Luiz Gonzaga.
O FOLCLORISTA
Até os anos 1960, havia na música brasileira uma categoria hoje inexistente, o cantor e autor de folclore, ou folk-lore. Uma das primeiras importantes intérpretes folk do país foi a recifense Stefana de Macedo (1903/1975), pioneira em gravar coco, maracatus, emboladas, macumbas, baião (a primeira vez em que o nome baião aparece num disco designando um gênero é num 78 rotações dessa cantora interpretando Estrela d’alva, de João Pernambuco, lançado em 1930).
Stefana de Macedo pertencia à alta sociedade pernambucana, o pai, deputado federal, levou a família para a Capital da República quando Stefana era adolescente. Elegante e bonita, ela apresentava recitais com o que se chama hoje de cultura popular no Teatro Municipal do Rio, no Palácio do Catete, nos locais mais chiques da então capital da República. Fez temporada no Teatro Colón, em Buenos Aires, onde se apresentou acompanhada por Villa-Lobos ao piano. O estilo começou a se extinguir no final dos anos 1950; Inezita Barroso foi a última das grandes intérpretes de folclore no Brasil.
Zé Dantas, antes de também se mudar para o Rio, era conhecido no Recife como folclorista (na época Luiz Gonzaga ainda estilizava os vários ritmos nordestinos com alguns parceiros). Foi contemporâneo de Gilvan Chaves, cantor e compositor, e de José Tobias, cantor de voz de baixo, a trinca trilhava o caminho do folclore. Dos três, José Tobias é o único ainda vivo (com 92 anos, morador do Rio de Janeiro), quando esta matéria é escrita.
Zé Dantas soube como poucos no Brasil processar o folclore sem tirar sua originalidade e, ao mesmo tempo, tornando-o palatável como música urbana. Muitos dos cocos que o inspiraram constam das pesquisas de Mário de Andrade no Nordeste, que podem ser conferidos no livro Os cocos, lançado muitos anos depois da morte do poeta e etnólogo paulista, organizado por Oneyda Alvarenga.
Sempre que ia ao Sertão, Zé Dantas pagava o excesso de peso do seu gravador de 14 quilos, com que registrava o falar, o cantar e os causos do homem do campo do Pajeú. Do coco Dois tatus (que Mário de Andrade dá como origem o Rio Grande do Norte), Zé Dantas compôs Siri jogando bola, cujo refrão – “Eu vi dois siris jogando bola/ lá no mar/ eu vi dois siris bola jogar” – é basicamente o mesmo do citado coco: “Eu vi dois tatus jogando bola/ eu vi dois tatus bola jogar”. A música foi lançada por Luiz Gonzaga em 1957.
O histriônico apresentador de TV Flávio Cavalcanti, em seu programa de crítica musical (que culminava com a quebra do disco com a música que não aprovava), comentou: “Nunca viu um siri jogando bola”, e que a história do jumento que tomou 30 Coca-Colas e deu um arroto de lascar era simplesmente grosseira e indecorosa. Zé Dantas respondeu a Flávio Cavalcanti num longo artigo no Correio da Manhã (em 2 de junho de 1957). Aproveitou para mostrar seus conhecimentos do folclore e da música e poesia oral nordestinas, e escancarar a ignorância do apresentador sobre a cultura popular nos sertões do país.
OBRA
Zé Dantas valeu-se de motivos do povo para compor Acauã, Sabiá, Derramaro o gai, entre várias outras, mas se inspirava muito mais nas coisas e paisagens de sua terra. O Riacho do Navio, por exemplo, passava pelas terras do pai dele, e o levou a compor uma de suas obras-primas mais elogiadas e regravadas. Luiz Gonzaga lançou a maioria de suas canções que se tornaram clássicos da MPB: Cintura fina, Vem morena, Noites brasileiras, Dança a moda, O delegado no coco, Forró em Caruaru, O xote das meninas, músicas que continuam sendo gravadas desde os anos 1950, por intérpretes de quase todos os nichos da MPB.
Mas, nos anos 1950, também forneceu composições para astros do rádio, Ivon Cury (Farinhada, Imbigada, O miudinho), Heleninha Costa (Qué qui tu qué), Aracy Costa (Na beira do mar), Carlos Galhardo (Ai, meu bem), o hoje obscuro Jair Alves em um único disco lançou quatro composições de Zé Dantas (Felicidade, Não vô chorá, Setembrina, Cangote cherôso). Não bastasse isso, deixou muita música inédita, feito Sá Marica Parteira (originalmente O parto de Sá Juvita), que foi lançada em disco por Luiz Gonzaga e pelo Quinteto Violado, em 1973.
Dona Iolanda, como curadora do minucioso acervo do marido, era generosa em oferecer composições inéditas. Em 2008, o violonista Cláudio Almeida ia gravar um disco em tributo a Zé Dantas. Eu o acompanhei à casa de sua viúva, num prédio na Avenida Boa Viagem. A intenção era copiar peças do acervo para ilustrar o álbum. Ela nos mostrou pacientemente as lembranças vivas de Zé Dantas, sua máquina de escrever, o violão, acetatos, fotos, cartas de amigos, como o poeta Rogaciano Leite, ou a coleção de gravatas borboletas, marca registrada no vestuário do marido. De repente, disse que ia nos dar um presente. Puxou de uma pasta uma partitura gasta pelo tempo, de uma música chamada Flor ingrata. Explicou que se tratava da primeira composição que Zé Dantas escreveu para ela, em 1949, quando se conheceram. Um mistério nunca ter sido gravada. Finalmente, saiu do ineditismo a música de Zé Dantas como a única faixa não instrumental do disco de Cláudio Almeida, Noites brasileiras, lançado em 2009.
Zé Dantas e sua esposa Iolanda. Imagem: Reprodução
A COMPANHEIRA
Em 1949, quando a adolescente Iolanda Simões – moça de família distinta do Recife, moradora do bairro nobre de Casa Forte – foi assumir um cargo de professora no Sertão do Pajeú, não poderia imaginar o rumo que tomaria sua vida, até porque ensinaria em Caiçarinha, distrito de Serra Talhada, e ali parecia que o mundo não girava. Ela escutava as amigas falarem nos bons partidos da região, entre estes, de um tal Zé Dantas, namorador, e pretendido por todas.
No 7 de Setembro ela veio para o Recife passar o feriado na casa dos pais. Houve uma festinha de família, e Zé Dantas foi convidado. Por coincidência, era colega na faculdade de Medicina da irmã de Iolanda, Ianese, e do namorado dela, José Leal de Farias. Não foi difícil para a mocinha ser cativada pelos encantos do Don Juan e seu inseparável violão. Encontraram-se antes da volta à Serra Talhada, e ele a presenteou com a primeira música inspirada por ela, Flor ingrata (a mais conhecida seria A letra I). Passaram a se corresponder e, em dezembro, ela veio à capital para a formatura da irmã, do cunhado e do paquera. Começaram a namorar durante a colação de grau.
Seguiram os trâmites dos namoros de então. Em 1950, Zé Dantas, formado, foi fazer residência no Hospital dos Servidores, no Rio de Janeiro. Comunicavam-se através de cartas, pelo menos quatro delas por semana. O casamento só aconteceu seis anos depois que se conheceram, em 1954, na igreja matriz de Casa Forte. Foram morar no Rio, onde dona Iolanda contava que viveram um sonho. Zé Dantas passou num concurso público e chegou a ser vice-diretor da Maternidade Alexander Fleming, em Marechal Hermes. Mas sabia conciliar a profissão com a família. O casal divertia-se bastante, eles passeavam pelos pontos turísticos do Rio, visitavam os amigos artistas, não perdiam as grandes festas que Luiz Gonzaga oferecia em seu casarão na Zona Norte. Um idílio que daria um filme, e com uma trilha sonora impecável.
No entanto, sete anos depois de casados, Zé Dantas faleceu. Dona Iolanda ficou com três filhos pequenos, e um vazio imenso no coração, que ocupou dedicando-se à memória do marido. Viúva, bonita e com uma polpuda aposentadoria, que somada ao que recebia de direitos autorais, não lhe faltaram pretendentes. Ela os ignorou. Decidiu voltar ao Recife, instalou-se num apartamento confortável na Avenida Boa Viagem, onde morou até a morte.
Seu espaçoso apartamento chegava a ser pequeno para o acervo do marido, espalhado por duas salas. Um museu particular. Ressentia-se de não ter mais as dezenas de cartas da correspondência com Zé Dantas. A mãe achou que a filha não precisava mais delas. Mandou cavar um buraco no chão do quintal e jogou tudo lá dentro. Perguntei-lhe se ela perdeu mais objetos do marido ao longo de todos aqueles anos. Sem resvalar para o sentimentalismo ela foi sucinta: “Não. A única coisa que perdi foi ele”.
JOSÉ TELES, escritor e jornalista especializado em música. Foi crítico de música do Jornal do Commercio de 1987 a 2020 e já escreveu sobre o assunto em diversas publicações do país.